A classificação dos títulos de dívidas dos governos como automaticamente livres de risco pode estar com os dias contados, o que deverá forçar os bancos a levantar bilhões de dólares em capital extra no futuro. O Comitê de Basileia de Supervisão Bancária, reunindo os principais reguladores do setor financeiro global, começou a examinar o tratamento regulatório dado aos títulos soberanos, apurou o Valor.
A classificação dos títulos de dívidas dos governos como automaticamente livres de risco pode estar com os dias contados, o que deverá forçar os bancos a levantar bilhões de dólares em capital extra no futuro. O Comitê de Basileia de Supervisão Bancária, reunindo os principais reguladores do setor financeiro global, começou a examinar o tratamento regulatório dado aos títulos soberanos, apurou o Valor.
Atualmente, as regras do Comitê de Basileia permitem aos bancos considerar risco zero para a exposição em títulos que compram dos governos. Isso é um poderoso instrumentos para as instituições aumentarem a compra desses papéis. No entanto, a crise financeira na Europa colocou em xeque essa avaliação, quando a Grécia declarou moratória de sua dívida. A partir daí, muitos investidores passaram a tratar vários títulos emitidos por governos europeus com diferentes graus de risco.
Agora, os principais reguladores globais começam a realizar estudos para avaliar a questão e formar um grupo de trabalho para elaborar eventuais propostas. A ideia é reduzir a flexibilidade que os bancos têm atualmente para medir o grau de risco de seus próprios ativos, que determina quanto capital próprio eles necessitam para absorver prejuízos futuros.
Danièle Nouy, presidente do Conselho de Supervisão do mecanismo único de supervisão do Banco Central Europeu (BCE), foi explícita recentemente: "Uma das lições da atual crise é que não há ativos livres de risco, absolutamente não há. Os títulos soberanos não são ativos livres de riscos e temos que reagir, precisamos ser decididos". Para ela, é necessário limitar a exposição dos bancos para que "não coloquem todos os ovos no mesmo cesto".
A pressão aumenta para que a exposição dos bancos a dívidas soberanas passe a ser tratada da mesma forma que outros ativos, também por causa de práticas que estão no radar das autoridades.
O Banco de Compensações Internacionais (BIS), espécie de banco dos bancos centrais, em seu relatório anual apontou dúvidas sobre o sistema de gestão de risco dos bancos, e sua saúde financeira, segundo o que as instituições publicam. O BIS cita que, com base na grande variação de capitais próprios declarados em relação aos ativos ponderados por risco, há extensa margem de divergência na aplicação das regras e até "mesmo possíveis desvios".
Ainda não existe uma proposta formal no comitê de Basileia. Mas fonte próxima das discussões disse que a regra geral é que os requerimentos de capital estabelecidos por Basileia são sempre sob a forma de pisos, ou seja, representam exigências mínimas - as autoridades nacionais sempre têm discricionariedade para exigir colchões acima dos valores recomendados pelo comitê.
A fonte insiste que é cedo para concluir que os bancos que compram títulos públicos vão ter de aumentar seu capital próprio. Certo mesmo é que as mudanças em pauta causem muita polêmica.
Alguns analistas de bancos argumentam que a compra de títulos dos governos por instituições financeiras durante a crise na Europa ajudou a manter a situação sob controle. Eliminar o risco zero poderia reduzir o nível de assistência que o setor bancário poderia fornecer em futura crise.
Desde a crise financeira, bancos europeus aumentaram em 50% a compra de títulos emitidos por seus governos, totalizando cerca de € 2 trilhões atualmente, segundo o Barclays. Essas aquisições aceleraram desde o fim de 2011, quando o BCE anunciou um programa de liquidez.
Bancos italianos são os maiores detentores de dívida de governo, representando mais de 10% de seus ativos, comparado a 10% no caso de bancos espanhóis, e cerca de 8% para os belgas e os portugueses. A mudança que está por vir pode elevar o custo de captação para alguns governos.
Os bancos passaram a acumular enormes quantias de títulos soberanos por várias razões. Primeiro, a crise financeira mostrou a importância de um balanço com maior liquidez, e os papéis públicos cumprem esse papel. Além disso, a pouca demanda por crédito deixou as instituições com excesso de recursos, que precisaram ser reinvestidos em ativos de pouco risco.
Na medida em que se eliminar o risco zero dos títulos soberanos, o banco precisará ter em reserva mais capital para a exposição a esses ativos.
Para o Barclays, isso terá implicações sobre os ganhos e capital próprio, por exemplo.
A instituição estima que o rebalanceamento de portfólios pode reduzir os ganhos em 5% para os bancos da zona do euro. Se as instituições venderem títulos de governos de maior risco e comprarem de menor risco, haverá maior divergência no "yield" entre os papéis soberanos. Isso poderia elevar o custo de captação para bancos com mais títulos de maior risco.
Se os bancos não fizerem uma mudança em seu portfólio, a ponderação de risco vai erodir os índices de capital próprio.
Pressionado pelo banco central, o KBC, maior banco da Bélgica, revelou em maio que seus ativos ponderados pelo risco tinham subido quase € 5 bilhões porque deixou de aplicar grau de risco nulo na sua carteira de títulos da dívida belga, checa, eslovaca e húngara.
Por ora, o Comitê de Basileia não firmou compromisso público com relação a prazos para avançar no tema.