Quando o assunto é Lars von Trier, uma confusão se torna quase sempre inevitável: ainda parece complicado identificar os limites entre o artista e a figura pública. Por um lado, os filmes do dinamarquês podem impressionar pela ambição e pelo rigor como enquadram as relações humanas.
Quando o assunto é Lars von Trier, uma confusão se torna quase sempre inevitável: ainda parece complicado identificar os limites entre o artista e a figura pública. Por um lado, os filmes do dinamarquês podem impressionar pela ambição e pelo rigor como enquadram as relações humanas.
Por outro, as declarações do autor muitas vezes resvalam em provocações barulhentas, sob medida para chocar a mídia. Essa contradição ganhou uma dimensão bombástica na edição de 2011 do Festival de Cannes. Após ter feito comentários interpretados como elogios a Adolf Hitler, o diretor foi expulso da Croisette. Enquanto isso, o longa Melancolia era aplaudido por grande parte da crítica, consagrando Kirsten Dunst com o prêmio de melhor atriz.
A mostra Em cartaz: Lars von Trier, que começa hoje no Cine Brasília (e segue, a partir do dia 25, no CCBB), deve desfazer esse e outros mal-entendidos que se criou em torno do cineasta. A retrospectiva, que integra a programação do 1º Festival Internacional de Artes de Brasília, exibe os momentos mais importantes de uma trajetória que marca há três décadas o circuito de arte internacional.
No total, são 20 filmes — entre eles, os raros O elemento do crime (1984), Epidemia (1987) e Medea (1988), além da série de tevê O reino (1994-1997), do curta inacabado Dimension (2010) e de documentários sobre o diretor. Só ficaram de fora seis curtas e um média-metragem (de 1981). O evento, organizado pelo CCBB e com entrada franca, tem apoio da Embaixada da Dinamarca.
Em Brasília, o apelo do diretor foi confirmado nas sessões lotadas de Melancolia, exibido na edição mais recente da mostra Em cartaz, em outubro de 2011. “Em uma das noites, 800 pessoas tiveram que voltar para casa. O interesse do público é muito grande”, observa Paula Sayão, gerente-geral do CCBB de Brasília. A mostra, por isso, será dividida em duas partes.
Os longas-metragens de ficção lançados comercialmente no Brasil — de Ondas do destino (1996) a Melancolia — têm sessões programadas no Cine Brasília, em película. Já as primeiras produções do diretor serão exibidas em DVD e betacam na pequena sala do CCBB. O professor da Universidade de Copenhagen Peter Schepelern, que lecionou para Trier, fará palestra no dia 28, no cinema da 106/107 Sul.
Mais do que um autor inventivo, essa filmografia chama a atenção para um outro talento de Lars von Trier: a capacidade de conjugar imagens atrevidas a campanhas de divulgação cuidadosamente pensadas para fisgar a curiosidade dos jornalistas. Seja em formato de trilogias, de movimento (o Dogma 95) ou de projetos despudorados (caso de Anticristo, de 2009, com cenas explícitas de violência e sexo), Trier criou eventos cinematográficos que, além de provocar tensões audiovisuais, pautaram a mídia — garantindo, em contrapartida, surpresas a cada sessão de estreia.
Esse jogo consciente de marketing, que Trier sempre tratou com cinismo, é um dos alvos dos desafetos do cineasta. Para esses, o dinamarquês seria misógino e niilista. Os fãs, em oposição, o admiram pela força de um olhar duro e desiludido para o mundo de hoje.
Influenciado por mestres como Stanley Kubrick, Ingmar Bergman, David Lynch e Andrei Tarkovski, Trier cria filmes que cobram do espectador uma tomada de posição — e rejeitam opiniões brandas. Na primeira exibição de Anticristo, no Festival de Cannes de 2009, parte da plateia abandonou a sala, impressionada por cenas de mutilação e terror — outra parte, no entanto, tratou o filme como obra-prima.
Cinismo e talento
A verdade é que não existe consenso sobre Lars von Trier. E essa condição controversa pode tornar ainda mais interessante a descoberta — ou a redescoberta — de uma obra que tratou furiosamente de temas difíceis (e abrangentes), como a violência contra mulheres, o imperialismo norte-americano e os efeitos da Segunda Guerra Mundial na vida europeia.
A própria engrenagem do cinema também se tornou uma obsessão do diretor, que tratou de desnudar os truques de encenação ao criar os cenários lacunares de Dogville (2003) e ao seguir as restrições do Dogma 95 (que impedia, por exemplo, o uso de luz artificial e trilha sonora) em Os idiotas (1998). “Mais do que pensar em formas eficientes de prender a plateia diante de um filme, é importante tentarmos contribuir para a arte”, afirmou.
Sempre disposto a mirar o estilingue contra a cultura norte-americana, Trier disse certa vez que o fato de nunca haver visitado os Estados Unidos não o impedia de fazer filmes sobre o país. “Somos todos um pouco norte-americanos”, comentou.
É na América, aliás, que se passa a trama de Melancolia, que venceu o European Film Award de 2011: após uma festa frequentada por tipos hipócritas — a charge e a caricatura são especialidades do diretor —, resta aos humanos acompanhar, impotentes, às notícias sobre o fim do mundo. Na plateia, a reação é bem outra: não há como ficar impassível diante de uma lente tão cruel, e sempre tão preparada para o ataque.
FONTE: Correio Braziliense